As determinações qualitativas do tempo (RG)

O Reino da Quantidade e o Sinal dos Tempos (RQST, tr. Vítor de Oliveira)

AS DETERMINAÇÕES QUALITATIVAS DO TEMPO

Tempo aparece mais afastado ainda do que o espaço da quantidade pura: pode-se falar de grandezas temporais, assim como de grandezas espaciais, e tanto umas como outras se relacionam com a quantidade contínua (porque não nos podemos ater à estranha concepção de Descartes, segundo a qual o tempo seria constituído por uma série de instantes descontínuos, o que pressupõe uma «criação» constantemente renovada, sem a qual o mundo estaria sempre a soçobrar nos intervalos dessa descontinuidade); há, no entanto, uma grande distinção a fazer entre estes dois casos, pelo facto de, como já vimos, se poder medir o espaço directamente, enquanto que, o tempo só se pode medir relacionando-o com o espaço. O que se mede realmente nunca é uma duração, mas o espaço percorrido durante essa duração num determinado movimento cuja lei se conhece; como esta lei se apresenta como uma relação entre o tempo e o espaço, pode-se, quando se conhece a grandeza do espaço percorrido, deduzir a do tempo levado a percorrê-lo; e, mesmo com alguns artifícios, não há outro meio para determinar as grandezas temporais.

Outra nota que leva à mesma conclusão é a seguinte: os fenômenos propriamente corporais são os únicos que se situam igualmente no espaço e no tempo; os fenômenos de ordem mental, aqueles que são estudados pela «psicologia» no sentido comum desta palavra, não têm qualquer carácter espacial, mas, pelo contrário, desenrolam-se igualmente no tempo; ora o mental, que pertence à manifestação subtil, está forçosamente, no que diz respeito ao individual, mais próximo da essência do que o corporal; se a natureza do tempo lhe permite estender-se até aí e condicionar as próprias manifestações mentais, é porque essa natureza deve ser ainda mais qualitativa do que a do espaço. Já que falamos em fenômenos mentais acrescentaremos que, quando se situam do lado do que representa a essência no indivíduo, é perfeitamente vão procurar neles elementos quantitativos, e com mais razão ainda, isto porque alguns vão até ao ponto de querer reduzi-los à quantidade; aquilo que os «psico-fisiologistas» determinam quantitativamente, não são os fenômenos mentais tal como eles os imaginam, mas tão só alguns dos seus concomitantes corporais; e não há nada que esteja relacionado com a natureza própria do mental, nem possa, por conseguinte, servir para explicá-lo no mais pequeno aspecto; a ideia absurda de uma psicologia quantitativa representa realmente o grau mais acentuado da aberração «científica» moderna!

De tudo isto se infere que, se podemos falar de espaço «qualificado», melhor ainda podemos falar de tempo «qualificado»; queremos com isto dizer que deve haver no tempo menos determinações quantitativas e mais determinações qualitativas do que no espaço. O «tempo vazio» não tem, aliás, mais existência efectiva que o «espaço vazio», e poder-se-ia repetir a este propósito tudo o que dissemos atrás, ao falar do espaço; não há mais tempo do que espaço fora do nosso mundo, e neste, o tempo realizado contém sempre os acontecimentos, tal como o espaço realizado contém sempre os corpos. Sob certos pontos de vista, há uma espécie de simetria entre o espaço e o tempo, da qual se pode falar muitas vezes de uma maneira paralela; mas esta simetria, que não se encontra relativamente a outras condições da existência corporal, deve talvez mais ao seu lado qualitativo do que ao seu lado quantitativo, como pretendemos mostrar ao assinalar a diferença que entre a determinação de grandezas espaciais e a das grandezas temporais, e também a ausência, no que diz respeito ao tempo, de uma ciência quantitativa no mesmo grau daquilo que representa a geometria para o espaço. Pelo contrário, na ordem qualitativa, a simetria traduz-se de um modo particularmente notável na correspondência que existe entre o simbolismo espacial e o simbolismo temporal, do qual já várias vezes tivemos ensejo de dar exemplos; logo que se trate de simbolismo, é evidente que a consideração da qualidade é que intervém essencialmente, e não a da quantidade.