In illo tempore, naquele tempo, era uma vez, once upon a time, c’era una volta, il était une fois, es war einmal. Não conheço língua nenhuma que exprima essa ideia com tanta leveza e com tanta profundidade como in illo tempore. Mais do que as outras, essa expressão nos atira numa atmosfera Uberta não somente das características próprias desta ou daquela época histórica, mas também de qualquer notação cronológica ou espacial. O episódio a que ela se refere pode ser entendido como havendo acontecido em épocas remotíssimas ou em tempos atuais, e em qualquer país de qualquer civilização. Livre de valores circunstanciais, esse episódio procura transmitir valores perenes do ser humano.
Não é sem razão que, pelo antigo ritual da missa na Igreja Católica, o sacerdote, ao anunciar a leitura de uma passagem de algum Evangelho, virando-se para os fiéis — aliás, atualmente ele já está voltado para os fiéis, ficando de costas para o altar, de costas para o Oriente, de costas para o nascer do sol, de costas para a fonte da luz —, virando-se para os fiéis, pronunciava a expressão libertadora “In illo tempore…” E também não é sem razão que os contadores de histórias tradicionais de cada povo — incluindo-se entre eles, de maneira muito particular, os povos árabes, persas, hinduístas e chineses — começavam e ainda começam a narração usando, cada qual em sua língua, as palavras “era uma vez”.
E já que estamos a voejar sobre estes assuntos, lembro-ME a tempo — e confesso que já ia distraidamente ME esquecendo — da maravilhosa história da Criação do mundo, assim como nos relata o primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, segundo as tradições israelita, cristã e muçulmana. Essa história — escrita por Moisés ou por alguns poucos altamente iniciados, sempre sob a sua orientação — começa com a palavra hebraica Beraeshith, a qual se traduz literalmente por “em princípio”, e não “no princípio”. Ora, nos quarenta anos de aprendizado e iniciação nos templos secretos do Egito e, em seguida, nos quarenta anos duramente vividos na região imantada de Median, ao sul do Sinai, uma comunidade de magos —, alguns destes, como por exemplo Jetro, oriundos da já antiga e sempre bela raça etíope (da qual emanará logo mais a Rainha de Sabá), outros provindos do Oriente, todos eles descendentes espirituais da linhagem de Melquisedeque, sacerdote do Altíssimo, Rei da Justiça e Rei da Paz —, Moisés, além de receber toda a antiga e vasta cultura científica dos egípcios, também desenvolveu sensibilidades sutis que lhe permitiam entender a intimidade das coisas da natureza: o movimento e o brilho dos astros, a música dos ventos, o zumbido dos insetos, a germinação das sementes, a linguagem das flores, o voo e o canto dos pássaros, o ruído das chuvas, das ondas e das cachoeiras, a natureza qualitativa dos números e das formas, tudo isso e tanto mais, enfim, um conjunto de aspectos do mundo que, aos poucos, o foi fazendo apurar os sentidos, tanto os externos quanto os internos, a ponto de ele poder captar, em certas ocasiões, o nome verdadeiro e o número das coisas.
Sabendo-se da importância fundamental que Moisés percebia na “ideia-força” de cada palavra e de cada letra de que são compostas as palavras, não sd pela magia-mântrica de sua natureza sonora, mas também pelo seu valor numérico — este, então, carregado de significações acessíveis apenas a certo tipo de sensibilidade intelectual e intraduzível para o discurso conceituai, pois corresponde à natureza qualitativa dos números —, sabendo-se desses cuidados e dessas sutilezas, indaga-se: como se explica que a primeira palavra empregada na narração da Criação do mundo seja Beraeshith, cuja primeira letra, Beth, é a segunda no sagrado alfabeto das 22 indefectíveis letras hebraicas, e não a primeira, Aleph, dando a entender, talvez, que o anterior ao ser, o anterior ao Um… mas que estamos aqui tentando escrever? Parmênides, o velho Parmênides do quinto século a.C., filósofo genial, como aliás o foram quase todos os pré-socráticos, já alertava no seu poema sobre a natureza, Peri physeos: “Para saber o que não é, advirto que nenhum passo poderá ser seguro, pois está fora de teu alcance saber o não-ser”. Qual é a linha divisória entre o ser e o não-ser? Para indicar aquilo que é anterior ao ser, anterior ao Um, talvez tenhamos uma única palavra — aquela que encabeça o primeiro semicírculo do desenho esquemático da árvore sephirótica da Kabbala judaica, palavra que nada diz, nada explica, nada sugere, mas que talvez seja, magicamente, ao ser pronunciada e enquanto pronunciada, a única possível: AIN.
Mas o que eu desejo dizer aqui é somente que, ainda mais expressiva do que in illo tempore, a palavra Beraeshith também significa “a qualquer tempo”, seja agora, seja sempre, e que, portanto, possui, entre outras significações, a mesma de in illo tempore ou “era uma vez”…
(Ignacio da Silva Telles, RevistaThot)