Fogo do Inferno

GTUFS

Muitas pessoas hoje pensam em termos como estes: “ou Deus existe, ou não existe; se existe e é o que as pessoas dizem que é, então reconhecerá que somos bons e não merecemos castigo”. Isso significa que estão dispostas a acreditar na Sua existência, desde que Ele se conforme com as suas próprias imaginações e reconheça o valor que atribuem a si mesmas. Isso é esquecer, por um lado, que não podemos conhecer os padrões pelos quais o Absoluto nos julga e, por outro, que o “fogo” além do túmulo não é, afinal, nada mais do que nosso próprio intelecto que se atualiza em oposição à nossa falsidade; em outras palavras, é a verdade imanente irrompendo em plena luz do dia. Na morte, o homem se depara com a imensidão inimaginável de uma realidade que não é mais fragmentária, mas total, e depois com a norma daquilo que ele fingiu ser, já que essa norma faz parte da Realidade. O homem, portanto, condena a si mesmo; segundo o Alcorão, são os seus próprios membros que o acusam; uma vez fora do reino das mentiras, as suas violações se transformam em chamas; a natureza, desequilibrada e falsificada, com toda a sua vã segurança, revela-se uma camisa de Nessus. O homem não arde apenas pelos seus pecados; arde pela sua majestade como imagem de Deus. É a ideia preconcebida de estabelecer o estado decaído como norma e a ignorância como garantia de impunidade que o Alcorão estigmatiza com veemência – quase se poderia dizer por antecipação – confrontando a autoconfiança dos seus contraditores com os terrores do fim do mundo. O estado humano, ou qualquer outro estado central análogo, está como que rodeado por um anel de fogo: nele só há uma escolha, ou escapar da corrente das formas para cima, em direção a Deus, ou então deixar o estado humano para baixo através do fogo, o fogo que é como a sanção da traição por parte daqueles que não compreenderam o significado divino da condição humana. Se “o estado humano é difícil de alcançar”, como sustentam os crentes asiáticos na transmigração, é igualmente difícil abandoná-lo, devido à sua centralidade e majestade teomórfica. Os homens vão para o fogo porque são deuses e saem do fogo porque são apenas criaturas: somente Deus poderia ir para o inferno eternamente – se pudesse pecar. Ou ainda: o estado humano está muito próximo do Sol divino, se é que podemos falar de proximidade nesse contexto; o fogo é o possível resgate — ao contrário — dessa situação privilegiada, cujo privilégio pode ser medido pela intensidade e inextinguibilidade do fogo. Da gravidade do inferno devemos inferir a grandeza do homem, e não, inversamente, inferir da aparente inocência do homem a suposta injustiça do inferno. (FSCI, O Alcorão)