Ódio

GTUFS

Se somente Deus tem o direito de punir, é porque Ele está além do ego; odiar significa arrogar-se o lugar de Deus, esquecer a partilha humana de uma miséria comum, atribuir ao próprio “eu” uma espécie de absolutismo, separando-o da substância da qual os indivíduos são apenas contrações ou nós. É verdade que Deus às vezes delega seu direito de punir ao homem, na medida em que ele se eleva acima do “eu”, ou deve e pode se elevar; mas ser instrumento de Deus é não ter ódio contra o homem. No ódio, o homem esquece o “pecado original” e, com isso, carrega sobre si, em certo sentido, o pecado do outro; é porque fazemos de nós mesmos Deus sempre que odiamos que devemos amar nossos inimigos. Odiar o outro é esquecer que só Deus é perfeito e que só Deus é juiz. Em boa lógica, só se pode odiar “em Deus” e “por Deus”; devemos odiar o ego, não a “alma imortal”, e odiar aquele que odeia a Deus, e não o contrário, o que equivale a dizer que devemos odiar o seu ódio a Deus e não a sua alma. Da mesma forma, quando Cristo diz que é necessário “odiar” o “pai e a mãe”, isso significa que é necessário rejeitar tudo o que neles é “contra Deus”, ou seja, o apego que serve de obstáculo ao “único que é necessário”. Esse “ódio” implica, para aqueles a quem diz respeito, uma libertação virtual; é então, no plano das realidades escatológicas, um ato de amor. (FSSG, Da Cruz)

Se o amor tem precedência sobre o ódio a ponto de não haver medida comum entre eles, isso se deve ao fato de que a Realidade absoluta é absolutamente amável; o amor é substância, o ódio é acidente, exceto no caso das criaturas perversas. Existem dois tipos de ódio, um legítimo e outro ilegítimo: o primeiro deriva de um amor que é vítima de uma injustiça, como o amor de Deus clamando por vingança, e este é o próprio fundamento de toda a ira santa; o segundo tipo é o ódio injusto, ou ódio que não é limitado interiormente pelo amor subjacente que é sua razão de ser e que o justifica; este segundo ódio aparece como um fim em si mesmo, é subjetivo e não objetivo, busca destruir em vez de reparar.

Tanto o Alcorão quanto a Bíblia aceitam que existe uma Ira Divina; e, portanto, também uma “ira santa” humana e uma “guerra santa”; o homem pode “odiar em Deus”, segundo uma expressão islâmica. De fato, a privação objetiva permite ou exige uma reação privativa por parte do sujeito, e o principal é saber se, em um caso particular, nossa piedade por uma determinada substância humana deve prevalecer sobre nosso horror pelo acidente que torna o indivíduo odioso. Pois é verdade que, de um certo ponto de vista, deve-se odiar o pecado e não o pecador; mas esse ponto de vista é relativo e não impede que, por uma questão de proporção, sejamos às vezes forçados a desprezar o pecador na medida em que ele se identifica com seu pecado. Ouvimos uma vez dizer que quem é incapaz de desprezo é igualmente incapaz de veneração; isso é perfeitamente verdadeiro, desde que a avaliação seja correta e que o desprezo não exceda os limites de sua razão suficiente, tanto subjetiva quanto objetivamente. O desprezo justo é tanto uma arma quanto um meio de proteção; existe também a indiferença, certamente, mas esta é uma atitude eremítica que não é necessariamente praticável ou boa na sociedade humana, pois corre o risco de ser mal interpretada. Além disso, e isso é importante, um desprezo justo é necessariamente combinado com uma dose de indiferença, caso contrário, faltaria o desapego e também aquele fundo de generosidade sem o qual a ira não pode ser santa. Ver um mal não deve nos fazer esquecer sua contingência; um fragmento pode ou deve nos perturbar, mas não devemos perder de vista o fato de que é um fragmento e não a totalidade; a consciência da totalidade, que é inocente e divina, em princípio tem prioridade sobre tudo o mais. Dizemos “em princípio”, pois as contingências mantêm todos os seus direitos; isso equivale a dizer que a ira serena é uma possibilidade, e até mesmo uma necessidade, porque ao odiar um mal, não deixamos de amar a Deus. (EPV, A Natureza e o Papel do Sentimento)