(Laurant1975)
A ideia de uma unidade primordial dos conhecimentos e o método de cruzamento na análise das diferentes formas tradicionais, essenciais na abordagem guenoniana, foram retomados do século XVIII através de autores como Frédéric de Rougemont, cuja leitura Guénon recomendou a amigos, mas que nunca citou como referência. Impressiona a reutilização massiva que todo o século XIX — e Guénon após ele — fez dos conhecimentos expostos em “O Povo Primitivo”.
Rougemont analisava o mistério dos primeiros séculos da história humana vulgar e colocava o problema da origem: o bruto das florestas ou o povo primitivo que sabia tudo? A linguística permitia definir os nomes do grande povo jafético: indianos, persas, gregos, eslavos, germânicos, gaélicos e celtas. Os resultados da linguística eram confirmados pelo estudo comparado das religiões antigas. Já em 1766, o autor de “A Antiguidade Revelada por Seus Usos”, Boulanger, afirmava:
“Nesse caos de tradições, reconhece-se claramente que não há em toda a terra senão uma única mitologia.”
Até os povos primitivos dos diferentes continentes possuem os mesmos símbolos, os mesmos mitos, que não podem ser explicados nem pelas leis fundamentais do espírito humano, nem pelo acaso — pressupondo necessariamente que todos os povos derivam de um berço comum. O estudo dos mitos fundirá numa história universal a ciência e a revelação.
Uma comunicação feita em 1821 perante a Academia de Ciências, provando a origem comum das constelações nos sistemas hindus e chineses, era rica em ensinamentos. Os combates dos grandes deuses, seus adultérios são imagens de fatos cosmogônicos; é preciso aproximar Mercúrio e Buda, Thot e Hermes, o cisne de Leda e o espírito de Deus pairando sobre as águas, Ménès e Manu — temas que Guénon retomou e desenvolveu, por exemplo, em “O Rei do Mundo” (RGRM p. 8-9), “O Homem e Seu Devir Segundo o Vedanta” (HDV p. 59) e “Aperçus sur l’Ésotérisme Chrétien” (RGAI p. 35).
Dessa comunidade de mitos podia-se deduzir a ideia de um monoteísmo primitivo cujas abstrações eles personificavam. Os sábios da Antiguidade, que nada deviam a Bacon ou Descartes, possuíam ainda a arte de traduzir o conhecimento em experiência vivida. Rougemont explicava como o sentido mais puro dos símbolos se obscurecera progressivamente: “alteração da ciência poética” em direção às lendas, ao politeísmo, à idolatria. A verdade estava velada, mas o fio tênue que unia essas fábulas à realidade não se rompera, e a explicação das religiões pagãs ainda era possível ao se redescobrir a Tradição — isto é, a lembrança exata que um povo conservara de um fato antigo.
A alteração segue esquemas fixos a partir da matéria primordial inerte e dos mitos das diversas deusas esposas do grande Demiurgo. A importância que Guénon lhes concedeu, desde seus poemas até os artigos de “A Gnose”, anunciava também a ruptura entre o universo manifestado (fruto das limitações do Demiurgo e do domínio da salvação religiosa) e o Deus Supremo acessível pelo Esoterismo.
Rougemont concluía o Livro I afirmando que o simbolismo da Cruz existia entre os índios americanos e que Cristo reconduzira os israelitas à fé de Abraão, os pagãos à de seus ancestrais, uns e outros à de Melquisedeque, último representante do Mundo primitivo. Sabe-se que Guénon fez de Melquisedeque um elemento central de seu “O Rei do Mundo”.