Frithjof Schuon – Do Divino ao Humano (FSDH)
Problema da Possibilidade — tópicos
- As duas interpretações da noção de possibilidade
- Sobre a distinção entre o “possível” e o “real”
- Quais das inúmeras possibilidades de um mundo se manifestam?
- Como um cosmos é criado? Papel da lei do mais forte
- A Vontade que quer o mal é a mesma que a Vontade que quer o Bem?
- A Onipotência não pode abranger o que é contrário à Natureza Divina
- Distinção capital entre Essência/Super-Ser e Criador/Ser
- Distinção entre possibilidade e possibilidades
- Possibilidade negativa e impossibilidade
- Você sabe
- O que significa: a história se repete?
- O que é o nada?
- Impossibilidade e absurdo
- Os diferentes planos da “Vontade” de Deus; Ibn Arabi contra os Asharitas
- Possibilidade abstrata e possibilidade concreta
- Possibilidade teórica e possibilidade prática
- Liberdade e Necessidade
- As possibilidades velam e revelam o Absoluto
EXTRATOS
A noção de possibilidade dá origem a priori a duas interpretações, uma das quais é “horizontal” e outra “vertical”, analogicamente falando: por um lado, diremos que “isto é possível, portanto pode ser feito”; por outro lado, diremos que “aconteceu, ou existe, logo foi possível”.
Neste último sentido, a noção de possível corresponde a uma observação retrospectiva, sendo a possibilidade então uma potência subjacente e apontada para uma necessidade de manifestação; no outro sentido, a noção é prospectiva e abre-se à incerteza.
Por um lado, é possível colher frutas, então em princípio posso fazê-lo, mas na verdade posso não conseguir; por outro lado, colhi frutas, então para mim foi possível; ou ainda, tal fruto existe, portanto corresponde a uma possibilidade na existência terrestre.
O critério do que a palavra “possível” significa legitimamente é o que ela significa de forma imediata: o que pode ser ou não ser, por exemplo uma viagem, ou o que prova a sua possibilidade pela sua existência, por exemplo uma espécie animal, é possível; estritamente falando, as coisas não poderiam ser, uma vez que o ser necessário remonta apenas ao Princípio divino, mas são porque a Existência é relativamente necessária de acordo com o poder radiante do Ser, e essa contingência, portanto a diversidade, é por sua vez necessária de acordo com o princípio de particularização específico da Existência.
Deus é ao mesmo tempo Necessidade absoluta e Possibilidade infinita; no primeiro aspecto, Ele transcende tudo o que é apenas possível, enquanto na segunda relação, Ele não é tal possibilidade, é claro, já que é absolutamente necessária, mas a Possibilidade tout court; isto é, ele é a Fonte de tudo o que pode ser, ou que deve ser, por necessidade relativa, portanto por participação na Necessidade absoluta.
A possibilidade é o poder na sua raiz e a indeterminação nos seus efeitos cada vez mais distantes; Deus é o “Todo-Poderoso”.
Diremos, portanto, que o Ser é simplesmente Possibilidade; possibilidade necessária em si, mas contingente nos seus conteúdos cada vez mais relativos; e por definição não-absoluto, no sentido paradoxal de um “absoluto menor” (apara-Brahma).
Como indicamos acima, a distinção entre Possibilidade e possibilidades é fundamental: Ser é Possibilidade, mas as Qualidades do Ser – que no Sobre-Ser são indiferenciadas e todas coincidem com a Essência – já são da ordem das possibilidades; em relação à Essência ou como elementos de uma refração ou de uma diferenciação, essas Qualidades “não podem ser”, embora em si mesmas e em relação aos seus conteúdos participem da necessidade absoluta da Essência.
Há duas noções que ainda devemos levar em conta, e estas são a de possibilidade negativa ou privativa e a de impossibilidade.
A manifestação do possível implica um contraste negativo na medida em que é contingente: enquanto o Ser, a Possibilidade como tal, não tem oposto – o nada é nada e, portanto, não pode ser objeto de nenhuma experiência – as manifestações mais contingentes do Ser, as coisas terrenas por exemplo, exigem um contraste, nomeadamente a sua ausência, que pode ser objeto de uma experiência.
Podemos ouvir um som, uma palavra, um ruído, mas também podemos experienciar o silêncio, de modo que isto também é uma possibilidade; mas é uma possibilidade privada, simbolizando, portanto, à sua maneira, um nada que é na realidade impossível, ou possível precisamente no único modo simbólico em questão aqui.
Porém, a possibilidade privativa manifesta, não apenas tal privação ou tal ausência, mas também o arquétipo suprasensorial ou informal do fenômeno ausente, portanto o princípio que abrange todas as suas manifestações possíveis mas, não se identificando com nenhuma delas, mantém um silêncio de profundidade, totalidade e infinitude; como resultado, a possibilidade privativa é ao mesmo tempo uma possibilidade de referência transcendente.
Quanto à possibilidade privativa que é o vazio, gostaríamos de salientar o seguinte: é verdade, e até óbvio, que o vazio não pode juntar-se ao nada, tal como não o pode qualquer outra possibilidade privativa; é a onipresença do éter, portanto um modo sutil de plenitude, que o mostra à sua maneira.
O impossível ou o nada não existe, mas a infinidade da Possibilidade lhes empresta uma existência pelo menos aparente e ilusória, e é este princípio que, em Mâyâ, se afasta do Princípio e estende o mundo num véu de inúmeras limitações e na direção de um nada obviamente nunca alcançado.
É a esta incompreensão que Ibn Arabi alude quando diz no seu Fuçûç el-Hikam (Fusus, capítulo sobre Seth): “Certos teóricos intelectualmente fracos, partindo do axioma de que Deus faz o que quer, declararam ser lícito admitir que Deus age contrariamente aos princípios e contrariamente ao que a Realidade é em si, e como resultado, chegaram ao ponto de negar a possibilidade (imkân) e de aceitar apenas a necessidade (wujûb), seja absoluta (“por essência”) ou relativa (“por outros”)… E em virtude do que a Possibilidade (= Mâyâ) é diferente da Necessidade (= Atmâ), quando esta última exige esta diferença? Ninguém conhece esta diferença, exceto aqueles que sabem através de Allah. »
E da mesma forma: referindo-se à expressão corânica “se ele quisesse, teria guiado todos vocês”, Ibn Arabi destaca que a não vontade divina é função, não de uma decisão arbitrária por parte de Deus, mas da natureza de tais possibilidades humanas, que de alguma forma precede a existência que Deus lhes atribui; e Ibn Arabi conclui que só o homem julga a si mesmo, porque o julgamento final nada mais é do que um aspecto da possibilidade representada por tal homem.
Uma possibilidade, por definição, quer ser o que é, a sua natureza é a sua vontade de ser; Deus só cria “dando existência” ao que quer ser isto ou aquilo.
Para esclarecer melhor o duplo sentido da noção de possível, diremos que há razão para distinguir entre uma possibilidade abstrata e uma possibilidade concreta.
Uma possibilidade abstrata é aquela que, do nosso ponto de vista humano, pode ou não ser; uma possibilidade concreta é o que, para Deus e, portanto, de fato, deve ser.
Segundo Ibn Arabi – ainda no Fuçuç (Fusus) – “uma possibilidade é aquela que pode ser atualizada ou não; mas na realidade, a solução eficaz desta alternativa já está implícita no que é esta possibilidade no seu estado de imutabilidade de princípio.
A possibilidade de princípio é aqui, portanto, apenas uma conjectura racional ou um cálculo de probabilidades, equivale a dizer: se este homem não fosse ele mesmo, se fosse outra pessoa, o seu destino permitir-lhe-ia fazer tal viagem; e assim por diante.
Quanto à distinção entre uma possibilidade teórica e uma possibilidade prática, ela é inteiramente contingente: uma possibilidade é prática – seja ela eficaz ou não – que se enquadra nas condições normais de uma coisa; é teórica uma possibilidade que requer condições anormais, portanto difícil de alcançar ou mesmo impossível de acordo com a experiência atual.
Mas onde permanece a natureza característica da possibilidade se tudo está determinado, as coisas não podem ser diferentes do que são? O Ser – Possibilidade – é feito de Liberdade e Necessidade; é livre porque é infinito e necessário porque é absoluto, polaridade que traduz à sua maneira a natureza indiferenciada do Ser Superior.
As possibilidades são os véus que por um lado restringem o Real absoluto e por outro o manifestam; A possibilidade muito simplesmente, no sentido singular e absoluto, é o Véu Supremo, aquele que envolve o mistério da Unicidade e ao mesmo tempo o desdobra, permanecendo imutável e sem se privar de nada; A possibilidade não é outra senão a Infinitude da Realidade.
Quem diz Infinitude, diz Potencialidade: e afirmar que Possibilidade em suma, ou Potencialidade, ao mesmo tempo vela e revela o Absoluto, é apenas uma forma de expressar a duodimensionalidade – em si indiferenciada – que podemos discernir analiticamente no absolutamente Real.
É em virtude do terceiro elemento – imutável em si mesmo – que a Possibilidade divina transborda e dá origem, “pelo amor”, a este mistério de exteriorização que é o Véu universal, cuja urdidura é feita de mundos, e a trama, de seres.
Quais das inúmeras possibilidades de um mundo são realmente manifestadas? São aqueles que por sua natureza são os mais consistentes, ou os únicos consistentes, com a realização de um determinado plano divino.
Segue-se daí que, na própria ordem das possibilidades, devemos distinguir entre possibilidades que refletem a necessidade do Princípio e outras que manifestam contingência como tal; as primeiras possibilidades geram as coisas que devem ser; estes últimos geram modos, que podem não existir.
Se abstrairmos do Sobre-Ser, temos o direito de atribuir a infinitude ao Ser; mas se é o Super-Ser que levamos em consideração, diremos que é o Infinito e que o Ser realiza esta infinitude em modo relativo, abrindo assim a porta à efusão de possibilidades indefinidamente diversas, portanto inesgotáveis.
Por exemplo, é absurdo admitir que uma coisa apresente simultaneamente e na mesma relação características que se excluam; mas como a impossibilidade, mesmo na medida em que se enquadra em categorias existenciais, não pode ser absoluta, há sempre possibilidades que tendem a resolver a contradição.
É assim que podemos dizer que a função do cinza é invalidar, “na medida do possível”, a impossibilidade do branco ser preto; e há uma infinidade de possibilidades intermediárias, até beirando o absurdo, que não podem ser explicadas de outra forma, tanto no nível dos acontecimentos como no das formas.
As possibilidades são revelações diferenciadas do Ser, procedem dele e não de uma Vontade arbitrária que as conceberia ex nihilo; e é a refração diversificada e contrastante que produz as modalidades invertidas e privativas das possibilidades originalmente necessariamente positivas, ou positivas em suas raízes.